terça-feira, 25 de maio de 2010

OS RECURSOS FINANCEIROS NA LDB de Nicholas Davies

1- Introdução



A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394), sancionada em 20/12/96 - embora produto sobretudo das iniciativas de grupos e partidos conservadores, aliados ao MEC e a entidades defensoras das escolas particulares - contém, na parte referente aos recursos financeiros, não só pontos negativos, como também alguns positivos. É bom frisar, no entanto, que os pontos positivos têm origem nas contribuições de educadores progressistas para o primeiro projeto de LDB encaminhado à Câmara dos Deputados, em 1988 (SAVIANI, 1997). Dividimos este capítulo em cinco partes: (1) definição e vinculação dos recursos para a educação; (2) definição de despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino; (3) a destinação de recursos públicos para escolas particulares; (4) a criação de um padrão de qualidade e o papel supletivo da União; (5) a divulgação e fiscalização da aplicação dos recursos públicos.

Antes de se entrar na análise propriamente dita dos recursos financeiros, deve-se enfatizar que o que importa não é tanto a letra e o espírito da lei em si, mas sim a vontade dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo e, sobretudo, a mobilização da sociedade e dos educadores em particular para fazer a lei ser cumprida. O Brasil é pródigo em leis (algumas boas) que, mesmo coerentes ou avançadas, não são cumpridas, sobretudo quando beneficiam a imensa maioria da população e/ou não interessam às classes dominantes, aos governantes e a outras instâncias do Poder “Público” (Legislativo, Judiciário). Assim, o problema maior não está na letra e/ou no espírito da lei em si (seja ela progressista ou conservadora), mas sim na existência de forças sociais fora e dentro dos aparelhos de Estado com força e dispostas a cumpri-la. Por exemplo, a educação está prevista como direito de todos e dever do Estado desde a Constituição Federal de 1934, mas até hoje o Poder “Público” (Federal, Estadual, Municipal) não cumpre a sua obrigação, tantas vezes reiterada em Constituições e leis educacionais ao longo das últimas décadas. Também desde a Constituição de 1934 a educação conta formalmente com recursos vinculados (vinculação interrompida nas Constituições de períodos declaradamente autoritários, de 1937 a 1946, e de 1967 a 1983) e, no entanto, até hoje centenas, talvez milhares de autoridades, entre prefeitos, secretários, governadores, e presidentes e ministros não aplicaram nem aplicam o que devem legalmente à educação. Tendo em vista a tradição de cumprimento seletivo da lei por parte do Poder “Público”, podemos prever que alguns artigos da LDB ‘pegarão’ e outros serão ‘para inglês ver’.



2- A vinculação de recursos para a educação



Um primeiro ponto positivo da LDB é a obrigação de a “União aplicar, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, 25%, ou o que consta nas respectivas Constituições ou Leis Orgânicas, da receita resultante de impostos, compreendidas as transferências constitucionais, na manutenção e desenvolvimento do ensino público” (Art. 69 - grifo do autor). O avanço em relação à Constituição Federal (CF) de 1988 está na obrigatoriedade de o percentual mínimo ser destinado ao ensino público. Se o Poder Público pretender destinar recursos oriundos de impostos a escolas particulares (o que é permitido pela CF e pela LDB), tais recursos não poderão fazer parte do percentual mínimo.

Entretanto, o avanço legal que representa a vinculação de recursos para a MDE tem sido minado pelas políticas concretas dos governos, como a Lei Kandir e as emendas constitucionais que criaram o Fundo Social de Emergência (1994-1996), o Fundo de Estabilização Fiscal (1996-1999)e a Desvinculação da Receita da União (DRU - 2000 a 2007), desvinculando recursos da educação. Para maiores detalhes, ver o capítulo 1.

Além do percentual sobre os impostos, a educação estatal conta com recursos adicionais como os do salário-educação (calculado à base de 2,5% sobre o total de remunerações pagas aos empregados segurados no INSS, segundo o Art. 15 da Lei 9.424, que regulamentou o Fundef) e convênios como os da merenda, transporte escolar, municipalização (no caso dos municípios), material didático. Os valores de tais convênios, bem como do salário-educação, por não serem oriundos de impostos transferíveis obrigatoriamente (constitucionalmente) pela União a Estados, Distrito Federal e Municípios e pelos Estados a Municípios, constituem acréscimos ao percentual mínimo.

A propósito do salário-educação, vale lembrar a modificação introduzida pela Emenda Constitucional 14, de 12 de setembro de 1996, segundo a qual as empresas terão que recolher esta contribuição social aos cofres estatais, não mais podendo utilizar os recursos do salário-educação para adquirir vagas na rede particular para seus empregados e dependentes ou montar escolas ou rede de escolas próprias, como fazem algumas grandes empresas há muito tempo, como o Bradesco. Entretanto, segundo o parágrafo 3° do art. 15 da Lei, os alunos beneficiados com recursos do salário-educação até a edição da Lei 9.424 (24 de dezembro de 1996) poderiam continuar usufruindo do benefício até concluírem o ensino fundamental, o que significa que em 2004 já não mais haveria alunos beneficiados com tais recursos, isto é, pressupondo-se que os que começaram em 1996 terminaram o ensino fundamental em 2003. Uma outra modificação bem recente relativa ao salário-educação, constante da Lei 10832, de 29/12/03, é a que prevê a distribuição integral da quota estadual entre o governo estadual e os municipais com base no número de matrículas que cada um tenha no ensino fundamental e o repasse direto pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) da parcela que cabe a cada um. Até 2003, o governo federal ficava com 1/3 da receita e devolvia 2/3 aos Estados onde ele havia sido arrecadado. A lei federal 9.766, de dezembro de 1998, estipulava que os Estados deveriam repartir esses 2/3 com os municípios com base em critérios a serem definidos em lei estadual, sendo um deles o de que pelo 50% da quota estadual seriam divididos entre Estado e municípios de acordo com o número de matrículas no ensino fundamental, regulamentação essa não realizada por vários governos estaduais até dezembro de 2003.

Uma outra novidade introduzida pelo Art. 69 em relação à CF foi a de o percentual mínimo válido ser, no caso de Estados, Distrito Federal e Municípios, o estabelecido nas suas respectivas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas, não o da CF (25%), como espertamente interpretado por governos estaduais e municipais e aceito por alguns Tribunais de Contas, como o do Estado do Rio de Janeiro.

Vale ressaltar, ainda, que o percentual vinculado à educação é mínimo, não máximo, como muitas autoridades costumam pensar, e que a obrigação das autoridades não reside na aplicação do mínimo (o que nem sempre fazem), mas sim do percentual igual ou superior ao mínimo que atenda às necessidades educacionais da população e obrigações constitucionais do Poder Público (ou, melhor, Estatal). Se o percentual mínimo for insuficiente para atendê-las (o que é provável), ele deve ser ampliado até o valor que permita tal atendimento. Infelizmente, os órgãos encarregados da fiscalização do cumprimento das leis educacionais não demonstram muita eficiência nesta função, deixando os cidadãos, que sustentam tais órgãos com os seus impostos, completamente desamparados frente ao Poder Estatal.

Cabe lembrar, ainda, que o percentual mínimo dos municípios tem uma destinação específica: ensino fundamental e educação infantil. Segundo o inciso V do Art. 11 da LDB, se as prefeituras pretenderem oferecer ensino médio ou mesmo superior, só poderão fazê-lo com recursos acima dos percentuais mínimos e só depois de terem atendido às suas áreas de atuação prioritárias: ensino fundamental e educação infantil. A Emenda Constitucional 14, por sua vez, estipulou que, por dez anos a partir da sua promulgação, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão não menos de sessenta por cento dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da CF, ou seja, 60% de 25%, ou 15% da receita de impostos, para o ensino fundamental.

Outros pontos positivos da LDB estão nos parágrafos 3º, 4º, 5º e 6º do Art. 69, alguns dos quais já previstos anteriormente, na Lei 7.348, de 1985, que regulamentou a Emenda Calmon, de 1983, a qual restabeleceu a vinculação de impostos para a educação, suspensa pela Constituição de 1967. O parágrafo 3º diz que o percentual mínimo é calculado, não apenas sobre a previsão da receita de impostos contida na lei do orçamento, mas também com base na abertura de créditos adicionais resultantes de excesso de arrecadação.

Já o parágrafo 4º estabelece que, se o percentual mínimo obrigatório não for aplicado num trimestre, o Poder “Público” é obrigado a corrigir monetariamente o valor devido não gasto e aplicá-lo no trimestre seguinte. Esta disposição é fundamental para evitar o que foi e é ainda muito comum entre os governantes, que gastam bem menos do que o percentual mínimo nos primeiros dez meses do ano e, em novembro ou dezembro, empenham (o que não significa necessariamente que a despesa relativa aos empenhos seja concretizada) valores astronômicos com o objetivo de compensar, em valores nominais, o que não foi aplicado em meses anteriores. Infelizmente, um parágrafo de formulação semelhante da Lei 7.348, de 1985, não foi cumprido pelas autoridades, conforme pude observar em estudos sobre gastos com educação das prefeituras fluminenses de Niterói, São Gonçalo, São João de Meriti, do governo estadual do Rio de Janeiro, e nada garante que Estados e Municípios estejam cumprindo o parágrafo 4º.

O parágrafo 5º é interessante porque, ao obrigar o repasse, no período de dez a vinte dias após a arrecadação, dos valores destinados à MDE ao órgão responsável pela educação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, evita, pelo menos no papel, que os órgãos da Fazenda fiquem retendo e desviando tais valores para tapar rombos na administração ‘pública’ e que os valores vinculados percam o seu poder real, como aconteceu com freqüência em época de inflação alta, em que os impostos arrecadados num mês só chegavam aos órgãos responsáveis pela educação muitos meses depois, acarretando perdas reais de mais de 100%, conforme denunciado por especialistas em financiamento da educação, como Jacques Velloso e José Carlos Melchior, e por depoentes à Comissão Parlamentar de Inquérito instalada em 1988 para investigar o cumprimento da aplicação dos percentuais vinculados à educação previstos pela Emenda Calmon, de 1983. É um parágrafo muito bonito, mas de difícil aplicação, pelo simples fato de que o Ministro ou Secretário da Educação, por ocuparem cargos de confiança e estarem nas mãos do Presidente ou Governador ou Prefeito, e não da lei, não vão denunciar o não-repasse para seu órgão, a não ser que tenham entrado em rota de colisão com o governante.

Também o parágrafo 6º - o atraso da liberação [dos recursos da educação] sujeitará os recursos à correção monetária e à responsabilização civil e criminal das autoridades competentes - é interessante, porém de difícil aplicação, pelas mesmas razões apontadas no comentário sobre o parágrafo 5º.



3- A definição de gastos com manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE)



A preocupação com a definição das despesas com MDE, que tem origem na LDB de 1961 e continuidade na Lei 7.348, de 1985, inspira os Art. 70 e 71, que, embora contenham avanços, continuam apresentando problemas e mesmo contradição com outros artigos. O avanço está no detalhamento (se bem que ainda insuficiente) do que os governantes podem considerar despesas ao qual se vincula o percentual mínimo. Programas de merenda escolar, assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica e outras formas de assistência social nas escolas, por exemplo, não podem mais ser incluídas nas despesas com MDE, ainda que as autoridades continuem sendo obrigadas a proporcioná-los. Também “obras de infra-estrutura, ainda que realizadas para beneficiar direta ou indiretamente a rede escolar”, não podem ser consideradas despesas em MDE, procurando-se, assim, coibir o que era e é muito comum nos governos, que mandam asfaltar uma rua ou construir uma rede de esgoto próximo (às vezes nem isso) a uma escola e incluem esta despesa em MDE. Também a pesquisa não vinculada a instituições de ensino ou, quando efetivada fora dos sistemas de ensino, não vise ao aprimoramento ou à expansão do ensino, não pode ser considerada nas despesas com MDE. Um problema deste inciso I do Art. 71 é que, dada a tendência das autoridades a terem interpretações bastante elásticas quando lhes convêm, qualquer pesquisa de qualquer órgão pode acabar sendo enquadrada na MDE. No Rio de Janeiro, por exemplo, as despesas da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa), que não pertence ao sistema de ensino nem de modo geral realiza pesquisas para melhorar ou expandir o ensino, são equivocadamente consideradas como parte dos 35% vinculados à MDE desde a Constituição Estadual de 1989. Outra despesa que não pode mais ser considerada como parte de MDE é a relativa a “pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em atividade alheia à MDE” (inciso VI do Art. 71). Isso significa que os gastos com profissionais da educação cedidos a órgãos que não sejam o da educação ou aposentados e pensionistas não mais poderão ser considerados dentro do percentual mínimo. Para se ter uma idéia do montante de gastos relativos aos aposentados da educação, basta lembrar que dos R$ 680 milhões de gastos previstos com o pessoal da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro para 1997, cerca de R$ 184 milhões foram de inativos e pensionistas. E, segundo a própria Secretaria, em declarações à imprensa do Rio em maio de 1997, milhares de professores estariam cedidos. O problema da implementação deste inciso é que os governos não costumam identificar nos orçamentos os desviados de função e os aposentados da educação.

Com relação às despesas que podem ser consideradas de MDE, sua definição nos 7 incisos do Art. 70 não impede brechas ou irregularidades que as autoridades costumam explorar. O inciso III, por exemplo - uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino - permite que todas as despesas dos hospitais-escola das universidades sejam incluídas no percentual mínimo de MDE, quando é sabido que uma parte significativa destas despesas se destina ao atendimento médico à população em geral, sem nenhuma vinculação direta e imediata com o ensino. O inciso V - realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino - é deficiente porque não impõe um limite aos gastos com a burocracia (atividades-meio), que, por controlar o uso dos recursos, costuma tentar se apropriar de parcelas vultosas do orçamento da educação, deixando minguados recursos para quem é realmente produtivo (nas atividades-fim). O inciso VI, por sua vez, ao permitir que a concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas seja considerada como MDE, contradiz de modo flagrante o caput do Art. 69, que estabelece o percentual mínimo apenas para o ensino público, excluindo, portanto, as escolas privadas do percentual destinado à MDE.



4- Recursos públicos para escolas privadas



Aliás, nesta questão da destinação de recursos públicos para escolas privadas, a LDB padece de várias incongruências internas. O Art. 77 permite a destinação de recursos públicos (não especificando se fazem parte do percentual mínimo vinculado à MDE) para aquisição de bolsas de estudo na educação básica (que vai desde a educação infantil até o ensino médio) em escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, as quais constituem um universo restrito das escolas privadas, conforme estabelece o Art. 20 da LDB (que classifica as instituições privadas em particulares, comunitárias, confessionais e filantrópicas). Ora, recursos públicos para bolsas em escolas privadas (que são todas as escolas não-estatais), conforme permitido pelo inciso VI do Art. 70, são bem mais abrangentes do que recursos públicos em comunitárias, confessionais ou filantrópicas.

O par. 1º do Art. 77, no entanto, estabelece que o Poder Público, embora possa conceder bolsas em escolas comunitárias, confessionais, e filantrópicas, é obrigado a investir prioritariamente na expansão da sua rede local. Quem irá fiscalizar as autoridades e obrigá-las a investir mais na sua rede do que em bolsas? As prefeituras de São Gonçalo e São João de Meriti, no Estado do Rio de Janeiro, demonstraram fazer o contrário nos anos 90, investindo prioritariamente em bolsas na rede particular. Foram punidas? Nesta questão, o projeto de LDB aprovado pela Comissão de Educação em junho de 1990 era mais avançado pois estabelecia, no Art. 105, que os recursos públicos só poderiam ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas depois que o Poder Público atendesse as responsabilidades com a sua rede, e também que, faltando vagas na rede pública, o Poder Público era obrigado a expandir sua rede no prazo máximo de um ano.

O parágrafo 2º do Art. 77 arremata as incoerências no campo de recursos financeiros, quando prevê que “As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber apoio financeiro do Poder Público, inclusive mediante bolsas de estudo.” Neste caso, qualquer universidade privada, e não apenas as comunitárias, confessionais ou filantrópicas, pode receber recursos públicos para pesquisa e extensão, que incluem mas não se restringem a bolsas de estudo.

A LDB não é, pois, clara sobre a destinação legal de recursos públicos para escolas privadas. Se o caput do Art. 69 diz que o percentual mínimo será destinado ao ensino público, o inciso VI do Art. 70 o contradiz ao permitir que bolsas de estudo em escolas privadas sejam incluídas nas despesas em MDE. O parágrafo 1º do Art. 77, por sua vez, permite a aquisição de bolsas de estudo somente para a educação básica e em escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, restringindo bastante a abrangência das bolsas de estudo em relação ao Art. 70, inciso VI. O parágrafo 2º do Art. 77, no entanto, amplia os beneficiários privados com recursos públicos, quando permite que qualquer universidade privada (não só comunitária, filantrópica, confessional) receba apoio financeiro do Poder Público em atividades de pesquisa e extensão, inclusive mediante bolsas de estudo.

Um outro problema está no caráter supostamente não-lucrativo das escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas. Conforme mostra Velloso, os lucros de tais escolas nunca são registrados como tais: “todos os reais lucros de uma instituição confessional de ensino atualmente podem ser transferidos à mantenedora a título de ‘contribuição à Casa Provincial’, sendo então registrados como despesas” (1990, p. 125, grifo no original). São ilusórias, pois, as condições estabelecidas pelos incisos I ("comprovem finalidade não-lucrativa"), II ("apliquem seus excedentes financeiros em educação"), III ("assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades"), e IV ("prestem contas ao Poder Público dos recursos recebidos") do art. 77 para que as escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas possam receber recursos públicos, pois são muitos os artifícios contábeis para conferir um caráter não-lucrativo a tais escolas.

Este breve exame de algumas incoerências na LDB permite, no entanto, detectar uma coerência em favor dos interesses privatistas, uma vez que alguns princípios válidos para o ensino público (gestão democrática, valorização dos profissionais da educação, padrão mínimo de qualidade) não se estendem às escolas privadas, que, no entanto, querem ter o direito legal de abocanhar uma parte dos recursos públicos, sem falar na manutenção das isenções fiscais de que gozam há muito tempo. Em síntese, quando os recursos públicos estão em jogo, as escolas privadas querem se equiparar às públicas. Não se dispõem, porém, a se submeter aos mesmos princípios da gestão educacional pública (o correto seria dizer estatal). O que só confirma a secular relação ambígua entre o estatal e o privado no capitalismo, ambigüidade que se torna mais intensa ainda por conta da tradição patrimonialista brasileira, em que os governantes acham natural tratar a coisa pública como propriedade pessoal, privada.



5- A criação do padrão mínimo de qualidade e o papel supletivo da União



Os artigos 74 a 76, estreitamente relacionados com o Fundef, tratam do padrão mínimo de qualidade para o ensino fundamental, a ser definido anualmente pelo Governo Federal a partir de um conjunto de parâmetros, e do papel supletivo e redistributivo do Governo Federal e dos Estados no caso de este padrão não ser alcançado por Estados, Distrito Federal e Municípios ao utilizarem os recursos constitucionalmente obrigatórios. Exemplificando, se o padrão for estipulado em R$ 300 por aluno/ano e o Município só dispuser de R$ 250, terá direito a receber do Estado e/ou da União R$ 50 por aluno para alcançar o padrão mínimo. Mas só se tiver aplicado o percentual constitucionalmente obrigatório, percentual este definido contraditoriamente na LDB. O Art. 69 diz que o percentual é o que consta das Constituições Estaduais ou Leis Orgânicas, porém o Art. 73 o contradiz ao estipular que os órgãos fiscalizadores devem verificar o cumprimento do disposto no art. 212 da Constituição Federal, no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e na legislação concernente. Um problema é que já se passaram muitos anos desde a promulgação da LDB e o governo federal não definiu o padrão de qualidade e os seus parâmetros, desobrigando-se, assim, de cumprir o papel supletivo. Entretanto, tendo em vista o descumprimento do valor mínimo nacional do Fundef desde 1997 até 2004 pelo governo federal, mais preocupado em reduzir os gastos sociais do que em garantir um padrão de qualidade em todo o Brasil, é mais provável que este padrão, se e quando vier a ser definido, represente um nivelamento por baixo, tal como aconteceu com a complementação federal para o Fundef (DAVIES, 2001a).

Além disso, a formulação sobre o padrão tal como se apresenta nos Art. 74 a 76 padece de problemas. Um é que só se aplica ao ensino fundamental oficial, não incluindo a educação infantil, o ensino médio e a educação superior, tanto particular quanto estatal. Por que restringir o padrão ao ensino fundamental oficial, quando deveria valer também para as escolas particulares, uma vez que foi erigido em princípio da educação nacional? Ora, se é um princípio (e não apenas a metade ou a terça parte de um princípio), deve valer para todos os estabelecimentos de ensino, oficiais e particulares, de todos os níveis. Caso contrário, não é princípio. Outro problema está no papel supletivo e redistributivo do Governo Federal e dos Estados. Embora previsto desde a Constituição Federal de 1934, pelo menos no tocante à União, até hoje os resultados de tal suplência por parte da esfera mais poderosa (o governo federal) têm sido pífios, sendo as ações de tal suplência caracterizadas muito mais pelo fisiologismo/clientelismo entre os governantes em questão do que por uma preocupação séria de suprir as deficiências locais, que, embora reais, são freqüentemente apenas pretexto para a compra de votos e a privatização dos recursos públicos pelos homens ditos ‘públicos’.

O parágrafo 3º do Art. 75 (“... a União poderá fazer a transferência direta de recursos a cada estabelecimento de ensino, considerado o número de alunos que efetivamente freqüentam a escola”), embora pareça descentralizante, pode ter implicações negativas para a constituição dos sistemas educacionais e a conformação de uma identidade menos localista e mais abrangente, coletiva, dos educadores. Este parágrafo estimula as unidades escolares e seus profissionais a pensarem em função sobretudo de si próprios, isolados em suas unidades, com o objetivo de captar recursos junto ao FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). Isso pode criar concorrência entre as escolas, que deixam de se ver como parte de um sistema educacional com objetivos comuns e passam a ter como horizonte apenas os muros da própria escola ou da comunidade escolar, não percebendo o caráter geral de seus problemas. Este parágrafo também padece de uma visão produtivista da educação, ao correlacionar recursos a número de alunos. Ora, o número de alunos deve ser apenas um dos parâmetros no cálculo do montante de recursos necessários, não o único. Há outros parâmetros: as escolas rurais/escolas urbanas, 1º segmento/2º segmento, cursos noturnos/cursos diurnos, escolas especiais. Correlacionar recursos a número de alunos é introduzir ou reforçar a lógica do mercado na escola, que passa a ser vista como uma empresa cujo sucesso depende do número de clientes/consumidores (os alunos).



6- Divulgação e fiscalização da aplicação dos recursos



Este talvez seja o ponto mais importante e difícil. A experiência brasileira tem demonstrado que de nada adiantam leis boas se elas não forem cumpridas e se as autoridades não forem punidas pelo seu descumprimento. O Art. 72 estabelece que o Poder "Público" é obrigado a divulgar, nos balanços (prestação anual de contas) e nos resumos mensais da execução orçamentária, as receitas e despesas vinculadas à MDE, exigência essa semelhante à do Art. 7º da Lei 7.348, de 1985, que estabelecia que as ações definidas como de MDE deveriam ser identificadas nas fases de elaboração e execução do orçamento. Ora, em estudos que realizamos sobre gastos em educação de várias prefeituras fluminenses e do governo estadual do Rio de Janeiro (DAVIES, 2000), esta identificação não tem sido feita, dificultando enormemente o controle social preciso.

E o que fazem os órgãos fiscalizadores, que, segundo o Art. 73, devem velar pelo cumprimento do disposto no art. 212 da Constituição Federal, no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e na legislação concernente? Não são poucos os problemas relativos a tais órgãos fiscalizadores. Um é que não sabemos que órgãos são estes e o alcance e interesse de sua ação. O Tribunal de Contas? O Ministério Público? A Câmara dos Vereadores? A Assembléia Legislativa? A Câmara dos Deputados? No caso dos Tribunais de Contas (TCs), a sua competência e confiabilidade deixa muito a desejar, conforme mostramos em outra parte deste livro. Além disso, seus conselheiros são nomeados segundo critérios políticos (a partir de conchavos entre governador e deputados ou entre prefeito e vereadores, no caso dos TCs do Município do Rio de Janeiro e São Paulo), o que enfraquece sua confiabilidade. Os órgãos legislativos, por sua vez, embora formados por “representantes” do povo, quase sempre revelam, no momento de apreciação das contas dos governos, forte propensão a representar os interesses das autoridades em troca de vantagens e cargos e aprovar as contas, mesmo quando contenham irregularidades como a não-aplicação do percentual mínimo da educação e tenham recebido, dos TCs, parecer prévio de rejeição, cuja eficácia é nula, pois pode, legalmente, no caso de contas municipais, ser derrubado por decisão de 2/3 dos vereadores, conforme permite o parágrafo 2º do Art. 31 da CF: “O parecer prévio [...] só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal”.



7- Conclusão



Este breve exame dos artigos que tratam dos recursos financeiros na LDB mostrou pontos positivos, outros insuficientemente definidos, e outros claramente favoráveis à destinação de recursos públicos para escolas privadas, ainda que com ambigüidades. Entretanto, conforme dito acima, o mais importante não é a letra ou mesmo o espírito da lei, mas sim as classes e grupos sociais que dentro e fora dos aparelhos de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) implementarão ou não tais dispositivos legais. Dada a estrutura privatista dos aparelhos de Estado brasileiros e a correlação atual não muito favorável à sua democratização, agravada pelo contexto neoliberal, o mais provável é que os pontos negativos (destinação de recursos públicos para escolas particulares) sejam plenamente aplicados, enquanto os positivos (vinculação de recursos, definição mais precisa da despesa em MDE, divulgação e fiscalização da aplicação) só o sejam parcialmente. Em suma, seguindo a tradição brasileira, as leis de interesse dos governantes, da alta burocracia estatal e das classes que os sustentam serão aplicadas com todo o rigor, porém as outras, de interesse das amplas maiorias, serão esquecidas ou, quando acionadas pelos setores progressistas, serão alvo de disputa judicial que promoverá a sua suspensão ou atrasará a sua aplicação. Só a organização e mobilização permanente, e não apenas episódica, dos setores populares e, no caso da LDB, dos educadores, aliados com setores populares em torno de um projeto de democratização real (não apenas eleitoral) do Estado, da sociedade e da educação, poderão fazer com que os aspectos positivos da LDB sejam cumpridos e, neste processo de organização e mobilização, se construam elementos reais e legais de uma nova educação a serviço das maiorias.



Referências bibliográficas

BRASIL. Lei 9.394, de 20/12/96. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Presidência da República. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em abril de 2003.

BRASIL. MEC. Conselho Nacional de Educação. Parecer 26/97. O financiamento da educação na LDB. Brasília. Disponível em www.mec.gov.br. Acesso em fevereiro de 1998.

DAVIES, Nicholas. Política fiscal golpeia política educacional. Universidade e Sociedade, São Paulo, ano VIII, n. 15, fev., 1998.

DAVIES, Nicholas. Verbas da educação: o legal x o real. Niterói: Eduff (Editora da Universidade Federal Fluminense), 2000.

DAVIES, Nicholas. O Fundef e as verbas da educação. São Paulo: Xamã, 2001a.

DAVIES, Nicholas. Tribunais de Contas e educação: quem controla o fiscalizador dos recursos? Brasília: Editora Plano, 2001b.

MELCHIOR, J.C.A.. Mudanças no financiamento da educação no Brasil. Campinas: Autores Associados, 1997.

SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação: LDB - trajetória, limites e perspectivas. Campinas: Autores Associados, 1997.

VELLOSO, Jacques. "O público e o privado no projeto de LDB: organização, gestão e recursos de ensino". In: LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: texto aprovado na Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados. São Paulo: Cortez; ANDE, 1990.

VELLOSO, Jacques. A reforma do financiamento do ensino e a LDB (Trabalho apresentado na 20ª reunião anual da Anped, em Caxambu, MG, em setembro), 1997.

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