Questão Social e Convivência Familiar

QUESTÃO SOCIAL E CONVIVÊNCIA FAMILIAR(1)
Eunice Teresinha Fávero(2)

A família parece ter sido (re)descoberta como a instituição capaz de centralizar as possibilidades de superação das condições de exclusão e de vulnerabilidade social às quais tem sido, historicamente, submetida grande parcela da população brasileira. Nessa direção, a centralidade sócio-familiar pauta a Política Nacional de Assistência Social, aprovada recentemente (PNAS/2004).
Considerando a família como um conjunto de pessoas unidas por laços de consangüinidade, de afetividade ou de solidariedade, como núcleo de apoio primeiro das pessoas, e a convivência familiar como direito, a PNAS estabelece que a segurança desse convívio deve ser garantida por uma política de Proteção Social - que assegure sustentabilidade para a prevenção, proteção, promoção e inclusão de seus membros.

Em novembro/04 foi instalada também a Comissão Intersetorial para Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes a Convivência Familiar e Comunitária, que deverá apresentar diretrizes políticas e proposta de Plano de Ação Nacional, com vistas à garantia deste direito.

Paralelamente, numa aparente desconexão com esses planos, e se contrapondo ao sistema de proteção e de garantia de direitos previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 1756/03 (3), com a finalidade de dispor sobre Lei específica de adoção. Ou seja, a adoção se transformaria numa medida prioritária – ao invés de ser uma das últimas medidas protetivas relacionadas no ECA.

O foco dessas propostas e planos é direcionado às famílias que têm sua autonomia e liberdade cerceadas pelo limite das condições concretas para satisfação das necessidades humanas. Assim, quando se fala em prevenção, proteção, promoção e inclusão de famílias, está se falando de famílias pobres e que “necessitam” de proteção do Estado, em razão da concentração de riquezas, que impede o acesso igualitário a direitos. Quando se fala em adoção como política pública, há um desvirtuamento da proposta de proteção integral prevista no ECA, que preconiza a manutenção de vínculos com a família e a comunidade natural, prioritariamente, sempre que se constate que eventual separação não se dará em razão de desproteção intencional. Fala-se de famílias sobre as quais, embora vistas cada vez mais na sua diversidade em relação aos aspectos de estruturação e composição, parece pairar a preservação de expectativas quanto às suas tarefas, obrigações e padrões de funcionalidade (MIOTO, 2004).

Pensar a convivência familiar como direito, num norte que implique na não individualização das expressões da questão social, e que evite o risco da reedição de conceitos e ações que sacralizam a família e moralizam aquelas que vivem em situação de pobreza, requer, dentre outros, a recuperação do disposto no ECA e o seu confronto com dados da realidade social, os quais revelam as imensas e históricas desigualdades sociais presentes neste país. Dados informam que os 50% mais pobres da população detêm 14,4% do rendimento e os 1% mais ricos, 13,5% (IPEA/2002); que 27,4 milhões de crianças brasileiras vivem em famílias com meio salário mínimo ou menos, por pessoa, e que convivem com o crescimento acelerado da violência urbana - a qual vitimiza 14 mil adolescentes de 12 a 19 anos por ano (UNICEF/2004).

Na contramão do ECA - que dispõe que a falta ou a carência de recursos materiais não deve motivar a destituição do poder familiar, e que quando constatada essa situação, a família deverá ser incluída em programas oficiais de auxílio - revela-se a realidade de parte das ações que tramitam na Justiça da Infância e da Juventude - JIJ. Pesquisa sobre motivos da entrega, do abandono ou da retirada da criança de sua família, em processos de destituição do poder familiar, em São Paulo (Fávero, 2001), revela que: 47,3% foram originados por carência socioeconômica; das mães e pais que perderam o poder familiar, 23,4% e 12,8%, respectivamente, não auferiam nenhuma renda; 19,5% das mães e 12,7% dos pais estavam desempregados. Os dados comprovam a situação de vulnerabilidade social das famílias, indistintamente e independentemente do motivo do rompimento do vínculo, mesmo quando relacionados à violência doméstica e negligência (5,0% e 9,5%). A condição de classe social condicionou a impossibilidade da convivência familiar em muitas das situações, ainda que possa ter se ocultado ou se revelado de forma particularizada, despolitizada, por vezes traduzida na incapacidade individual de cuidar dos filhos.

A efetivação da mudança que propõe o ECA depende do contínuo investimento público, por meio de políticas de redistribuição de renda, de trabalho, de educação, de saúde, e de um movimento permanente que vise mudar mentalidades. Se não houver uma radical mobilização social que enfrente essa bárbara realidade, o sistema de Justiça da Infância e da Juventude, e as organizações sociais afins, serão cada vez mais chamados a agir prioritariamente no mero controle das violentas seqüelas decorrentes das desigualdades sociais, dando margem, ainda, à proposição de legislações e ações direcionadas tão somente a este fim. Assim, pode-se fortalecer ações pontuais e ineficazes para garantir direitos, arriscando importantes conquistas das lutas sociais.

Notas
(1) Artigo publicado originariamente no Jornal do CRESS SP "Ação", nº 48, Dez 2004.
(2) Assistente Social, 1ª Secretária da AASPTJ-SP, Doutora em Serviço Social.
(3) Ver a íntegra do projeto, bem como a Carta de São Paulo (contrária ao projeto) e documentos sobre o tema nos sites http://www.aasptjsp.org.br (em notícias e subsídios) e http://www.mp.sp.gov.br.

Referências Bibliográficas

FÁVERO, E. T. Rompimento dos Vínculos do Pátrio Poder - condicionantes socioeconômicos e familiares. São Paulo. Veras, 2001.

MIOTO. R. C. T. "Novas propostas e velhos princípios: a assistência às famílias no contexto de programas de orientação e apoio sociofamiliar". In Política Social, família e juventude: uma questão de direitos. Mione A S., Maurílio C. M., Maria Criatina L., (orgs). São Paulo. Cortez, 2004. Política Nacional de Assistência Social. Secretaria Nacional de Assistência Social - MDAS. Encarte Revista Serviço Social e Sociedade nº 80. São Paulo. Cortez, 2004.

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