quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A garantia do Direito

Matéria para Jornal da APUSM

A GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO BÁSICA ESTÁ EM RISCO!

Débora Teixeira de Mello
Maria Luiza Rodrigues Flores
Docentes da UFSM/Departamento de Administração Escolar
Integrantes do Fórum Gaúcho de Educação Infantil



No último dia 17/08/10, aconteceu na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul uma Audiência Pública para discussão do Projeto de Lei 6755/2010 - PLC, do Senador Flávio Arns (PSDB/PR), em tramitação na Câmara dos Deputados. Este PLC tramitou no Senado como PLS 414/08, tendo como relator o Senador Sérgio Zambiasi (PTB/RS) foi aprovado em caráter terminativo e encaminhado à Câmara dos Deputados em 05/02/2010. A aprovação desta proposta no Senado, sem a devida discussão com a sociedade gerou mobilização nacional de diversas entidades de defesa dos direitos da criança e ligadas à educação, tendo em vista desconsiderar, entre outros aspectos, a legislação no que se refere à idade adequada ao ingresso no Ensino Fundamental. A Audiência no Rio Grande do Sul foi solicitada pelo Fórum Gaúcho de Educação Infantil – FGEI, ligado ao Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil – MIEIB, e estiveram presentes mais de 20 entidades representativas do cenário nacional ligadas à Educação, entre elas a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação - UNCME, a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação - UNDIME, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação – ANPED, a Rede Nacional Primeira Infância – RNPI e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Além destas entidades, o Rio Grande do Sul foi representado por docentes e acadêmicos de universidades, conselheiros/as de educação estaduais e municipais, secretário/as de educação, líderes sindicais, integrantes de grupos de pesquisa, representantes da Câmara de Vereadores e assessores parlamentares. Uma vez que esse PLC reduz os anos destinados à vivência na Educação Infantil, vamos abordar, inicialmente, suas repercussões para esta etapa da educação e, logo a seguir, discorreremos sobre os desafios que também se colocam para a garantia do direito ao Ensino Fundamental e à Educação Básica como um todo, caso este Projeto de Lei seja aprovado.

A Educação Infantil foi reconhecida como primeira etapa da Educação Básica pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN 9394/96, que estabelece em seu artigo 30 – Inciso II, a faixa etária de 0 a 3 anos como creche e de 4 a 6 anos como pré-escola. A Emenda Constitucional nº 53 - EC, de 2006, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, em seu Inciso IV, determina que a Educação Infantil, oferecida em creches e pré-escolas, deve atender às crianças até 5 (cinco) anos de idade. Esta Emenda Constitucional acompanha a redação da Lei 11.274/2006, que definiu os 6 anos como idade de ingresso no Ensino Fundamental, que, no Brasil, passou a ser de 9 anos, a partir da Lei 11.114, de 2005.
O referido PLC 6755/2010, propõe alterações a LDB 9394/96 no que se refere a faixa etária destinada à Educação Infantil, sob o argumento de estabelecer uma coerência entre o término da Educação Infantil e o início do Ensino Fundamental nos documentos legais acima citados. Ocorre que, na intenção de propor este alinhamento, o referido PLC usa como estratégia a antecipação da matrícula obrigatória no Ensino Fundamental para todas as crianças a partir do dia seguinte ao que elas completarem 5 anos de idade. Com esta proposta, o Senador Flávio Arns, em verdade, desconsidera e fere o ordenamento legal vigente para a educação brasileira. A Resolução CNE/CEB nº 5, de 17/12/2009, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI afirma: “As crianças que completam 6 anos após o dia 31 de março devem ser matriculadas na Educação Infantil.”(artigo 5º, § 3º). A Resolução nº 1, do CNE/CEB, de 14/01/2010, ao definir Diretrizes Operacionais para a implantação do Ensino Fundamental de 9 anos, reafirma que apenas a criança que terá 6 anos a partir do dia 31 de Março do ano em que ocorrer a matrícula, deve ingressar no 1º ano do Ensino Fundamental(artigo 2º).
A proposição de que uma criança aos 5 anos recém completos ingresse no Ensino Fundamental ignora as necessidades, potencialidades e especificidades do desenvolvimento infantil. Nas últimas quatro décadas, o campo de estudos sobre a educação infantil teve importante desenvolvimento, consolidando concepções sobre uma Pedagogia da Infância, que contempla, como afirmam as atuais DCNEI, as brincadeiras e interações como eixo do currículo para uma escola que se ocupe da educação coletiva de crianças pequenas. As pesquisas contemporâneas sobre a infância têm enfatizado a importância do brincar como condição para a saúde psíquica e o desenvolvimento integral da criança pequena. Nossa sociedade precisa estar atenta contra um projeto como este que desconsidera os avanços da área e impossibilita que as crianças até os 6 anos completos tenham garantido o seu direito de viver a infância.


Tratemos agora, de algumas implicações do PLC 6755/10 para a oferta de educação nos anos iniciais do Ensino Fundamental de 9 anos. Nas publicações do Ministério da Educação - MEC , essa alteração, que já é uma realidade em vários países, inclusive da América do Sul é apresentada como tendo por objetivo: oferecer maiores oportunidades de aprendizagem no período da escolarização obrigatória e assegurar que ingressando mais cedo no sistema de ensino, as crianças prossigam em seus estudos, alcançando maior nível de escolaridade. Segundo o argumento oficial, na busca da universalização do Ensino Fundamental e do aumento da escolaridade obrigatória teríamos por conseqüência a inclusão de um número maior de crianças, no sistema educacional brasileiro. Destacamos, contudo que não é somente a transferência das crianças de seis anos para o Ensino Fundamental que garantirá a sua inclusão com sucesso nessa nova estrutura do sistema educacional.
Com a implementação da Lei nº 11.274/06, que dispõe sobre a matrícula obrigatória das crianças aos 6 anos de idade no Ensino Fundamental com duração de 9 anos, surgiram várias demandas para os sistemas de ensino: elaboração de novas propostas pedagógicas, formação continuada de professores gestores e demais profissionais da educação para atuação e gestão neste novo ciclo de alfabetização inicial, construção de salas, reorganização dos espaços físicos e aquisição de mobiliários, materiais e recursos pedagógicos adequados às crianças de 6 anos, que até o ano anterior se encontravam nas turmas de Educação Infantil ou, mesmo, fora da escola.
De acordo com a referida Lei, os municípios teriam até 2010 para a plena implementação desta ampliação, que não se trata de uma medida meramente administrativa, mas que exige um novo projeto pedagógico que inclua a criança de 6 anos considerando as características de seu desenvolvimento biológico, social, psicológico e cognitivo. Assim, aos sistemas de ensino, é lançado o desafio de repensar o Ensino Fundamental, de implementar uma proposta pedagógica que agora contemple a faixa etária dos 6 anos de idade, realizando uma reestruturação qualitativa dos Anos Iniciais deste nível de ensino, considerando as experiências do campo teórico de uma Pedagogia da Infância.
Tendo em vista que esse contexto de ampliação do Ensino Fundamental ainda é bastante recente e que não temos resultados de pesquisas sobre essa implementação, destacamos a inadequação de uma proposta de alteração da LDBEN 9394/96 que venha, de forma unilateral, obrigar a matrícula das crianças de 5 anos nos sistemas de ensino que recém, em 2010, se preparam para incorporar a totalidade das crianças de 6 anos. A falta de discussão com a sociedade civil e com o meio acadêmico, bem como a desconsideração do contexto acima narrado é outra das falhas do PLC 6755/10.
Chamamos a atenção, também, para o fato de que ao “encurtar” um ano de direito à pré-escola, o referido PLC, por não acrescentar mais um ano de Ensino Fundamental, também “rouba” um ano de escolaridade básica obrigatória para todas as crianças e jovens brasileiros, que, ingressando aos 5 anos e seguindo o fluxo escolar contínuo, concluirão seus estudos aos 16 anos, o que significa à perda de um ano de escolaridade obrigatória, de acordo com a Constituição Federal, que atualmente, após a alteração feita pela Emenda Constitucional 59/09, tornou obrigatória a escolaridade dos 4 aos 17 anos de idade.
Por todos esses problemas, o PL 6755/10 vem sendo discutido e continuará na pauta de vários movimentos sociais e de entidades acadêmicas. O Estado do Rio Grande do Sul foi o primeiro a realizar uma Audiência Pública pautando essa matéria, na qual todas as entidades presentes foram unânimes em repudiar essa proposta. Como resultado desta Audiência, ficou o compromisso da Comissão de Educação daquela Casa de encaminhar dossiê sobre essa matéria, os depoimentos apresentados pelas entidades presentes ao Ministro da Educação Fernando Haddad e ao relator deste projeto na Câmara, o Deputado Joaquim Beltrão.
O Fórum Gaúcho de Educação Infantil faz questão de destacar a receptividade da Comissão de Educação de nossa Assembléia ao seu pedido para realização desta Audiência. Mas também, queremos reforçar a necessidade de que a sociedade gaúcha e a brasileira precisam estar atentas aos próximos movimentos necessários para que a garantia do direito à Educação Básica de qualidade pedagógica e social seja preservada.

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